Coluna do Jornalista Marcus Prado EM TODOS OS LUGARES , O LUGAR – XXXVIII.
(Fragmentos de um livro inédito)
DUAS VEZES, para minha tristeza, passei os dias de Carnaval longe da Vitória de Santo Antão. A primeira, foi numa velha cidade ao Norte de Portugal, a Vila da Feira, na ocasião em que se comemorava o centenário de nascimento do poeta Fernando Pessoa. Fui, na condição de convidado, porque fazia parte de uma comissão, sediada no Gabinete Português de Leitura, do Recife, de onde sairia um vasto programa comemorativo do centenário do genial poeta. Além disso, era de interesse da comissão organizadora local e da comunidade portuguesa a ida de alguém que tivesse bom trânsito entre os pessoanos de lá, para consolidar um intercâmbio cultural que resultou, no final, em memoráveis promoções no lado de cá. Tive a honra de ser escolhido. No domingo de Carnaval, que é um dia comum na Vila da Feira, me vi cercado de uma nostalgia que não é fácil expressar com palavras, embora jamais tenha sido folião (e precisa ser folião para sentir saudade dos carnavais de Vitória?), lembrando-me das cenas momescas e daqueles que faziam, no meu tempo de menino, o Carnaval mais alegre e famoso do mundo. Diante desse Carnaval, e de tudo o que eu assisti de animação e arte , é impossível pensar que existe outro igual.(Tenho motivos para enaltecer o carnaval vitoriense, porque fui um dos seus homenageados, com alegoria e tudo, pelo clube de minha paixão carnavalesca: "O Camelo", no ano em que esteve sob o comando de Joel Neto e Lourdinha).
TERMINADOS os compromissos sociais da noite, hospedado num velho castelo da Vila, abri a janela superior, deixando a brisa da neve entrar pelo apartamento , e parece que vi desfilando pelos jardins da secular fortaleza vultos de antigos carros alegóricos feitos por João de Barros, Antonio Varela e Zé Marques , os mais criativos carnavalescos de minha terra. Juro que não era sonho nem miragem. Olhar nas lonjuras , com um gosto amargo de saudade no peito, eu vi desfilando no carro alegórico (a alegoria era tamanha que bailava solta no espaço, no céu frio e sem estrelas da Vila da Feira) a "Turma da Curriola" : Geraldo Lima ,Eliel Tavares, Dodó, Biu Cândido, Carlos Palmeira Valença, Mizura , Antônio Sapateiro, Zé Palito, Zezinho Mesquita, Aloísio Xavier, Vivi Moura, Zé Vítor, Wilson Bruto, Humberto Aranha, Gabriel Mesquita, Ivanildo de "Mané de Caxeiro", Mauro Barreto, Geraldo Negão, Juraci , Ozita, Jane, Ruthe de Deus, Lindomar Moura e Mirtes. Não sei se era do "Camelo", do "Leão", da "Girafa" ou dos "Motoristas", sei que no abre-alas , que muitos chamavam de "esquadrão", orgulhosos como soldados de Napoleão vencedor, apareciam Pedro Ramalho , Serafim Moura, Terezinha de Sitonho , Joel Neto e Lourdinha, todos montados no seu cavalo branco , fantasiados de escudeiros de um reino mitológico, imaginário, alegre. . No carro alegórico que meus olhos viam , porque era feito com a fantasia do sonho, todos cantavam , numa só voz, o hino de guerra da "turma da curriola", feito por Zezinho Mesquita em parceria com Mizura. Confesso que tomei um "porre" de vinho fabricado na "mui leal e invicta cidade do Porto" e fui dormir.
EM COIMBRA, levado pelo poeta e professor José Rodrigues de Paiva e pela professora Irene Lima Marques, portugueses pernambucanizados , ambos com passagem de trabalho na Vitória de Santo Antão, fui conhecer a noite boêmia dos estudantes da sua velha e famosa Universidade. O "hino de guerra" dos "acadêmicos" ( cada um com suas tradicionais capas pretas, porque era inverno em Coimbra), me fez lembrar de imediato o hino da "turma da curriola" vitoriense.
VOLTO A LUCERNA, nos Alpes suíços, ponto inicial da resistência histórica de duas correntes de religião na Suíça e na Alemanha: o catolicismo e o protestantismo e onde o movimento de rebeldia intelectual – Dadaísmo – teve grande impulso Ao caminhar pelas ruas do Centro descobri que, nas fachadas das casas mais antigas seus moradores gostam de representar suas profissões. Essa é uma velha tradição local. Para citar um, entre numerosos exemplos: Crianças brincando com um relógio mostram aos transeuntes que a casa era de um relojoeiro. Ora, quem passa por uma antiga casa comercial vitoriense, construída há mais de meio século, perto do prédio da Maçonaria, verá na parte cimeira, em alto relevo, um relógio parecido com aquele de Lucerna.
OS PROFESSORES Ormindo Pires Filho e Luzilá Gonçalves Ferreira, do Curso de Doutorado em Letras da UFPE, meus queridos amigos, deram-me a grata incumbência de pronunciar palestra de saudação a Rachel de Queiroz no I Congresso de Literatura Nordestina que eles coordenaram com notável êxito. Eu estava na Inglaterra quando recebi a comunicação e Rachel de Queiroz curtia breves férias no inverno frio de Jersey, a maior das ilhas do Canal da Mancha, a 160 km de onde eu estava , ao sul da costa inglesa , e somente a 19 km da costa norte da França. Não deu outra: consegui às pressas um lugar numa aeronave da Aurigny air Services (Aurigny é ao antigo nome francês da ilha de Alderney, sendo possivelmente o menor território do mundo a se gabar de sua própria linha aérea "nacional") e fui ao encontro de Rachel. ( Se eu já tinha vontade de conhecer a ilha Jersey, miragem que me aparecia toda vez que eu atravessava o Canal da Mancha, eis que surgia uma oportunidade singular. Para o meu trabalho era de extrema necessidade uma conversa com Rachel.). Foi um barato! Ao chegar na ilha francesa, a primeira coisa que fiz foi procurar a escritora que o Brasil inteiro ama e admira, de quem me tornei fiel leitor.
O GERENTE DO HOTEL, seguindo minhas instruções, ligou para o apartamento de Rachel, e disse: "Um amigo do "Cabo Iolando" está aqui, para avistar-se com a Senhora". Rachel desceu com estranha alegria para receber o visitante inesperado. Agora é que vou contar porque a autora de "O Quinze" entrou nesta história de andar e ver.
FALAR DO "CABO IOLANDO a Rachel de Queiroz é falar da Vitória de Santo Antão, que ela nunca conheceu, e das lembranças que ela guarda ainda hoje de um dos mais queridos amigos , o vitoriense Nestor de Holanda, sobrinho de Maria Belkiss, primo de Manuel de Holanda e José Aragão, e pelas afinidades sanguíneas, dos Holandas que nasceram na Vitória, os Holandas do lado de Manuel e os Holandas da casa de José Bonifácio. Escritor e jornalista famoso no Rio de Janeiro, onde viveu a vida inteira depois que deixou a Vitória e o Recife, sem esquecer jamais a sua terra natal, fonte de inspiração de vários livros, numerosas crônicas, romances e até peças de Teatro, Nestor era tratado por Rachel com o apelido de "Cabo Iolando". Como nasceu esse apelido? Nestor ficou conhecido assim, no quartel do exército e na sua autobiografia romanceada que atraia o interesse de Rachel.. Acertados os detalhes do Congresso literário pernambucano, em que a romancista e "imortal" da ABL seria a grande homenageada, eis que a Vitória dos livros e crônicas de Nestor passaria a ser assunto dominante ao longo da noite .
"E AS PITOMBAS, que Nestor chupava no pátio da feira, toda vez que voltava à cidade das suas emoções infantis, ainda são vendidas no lugar? E a casa onde ele nasceu, ainda existe? E os velhos sobrados da Rua da Baixinha, ainda estão com suas paredes em pé? E o rio Tapacurá, ainda inunda as plantações de hortaliças nos inversos antonenses? E a pirâmide do Pátio da Matriz continua marcando a passagem do tempo? Que foi feito do sobrado da tia Martha de Holanda?"
NUMA DAS RUAS da ilha Jersey , descubro , para minha surpresa e alegria, uma loja de objetos antigos com o nome de "Victoria" e , se não bastasse, vejo dentro dela um rádio tipo "olho mágico" , da marca RCA Victor, que me fez lembrar , de imediato, outros rádios desse mesmo tipo que eu via, no meu tempo de menino, nas casas amigas de Eurico Valois, de Fenelon, de Josué , marido de Dona Mocinha; do professor Aragão, de Zé Palito e Pedro Varela; de Lina Costa e Aníbal Celestino, de Serafim Moura. Para aumentar a saudade, parece que eu vi, naquela loja , o rádio que meu pai havia comprado na "Casa Rios", e que seria levado para conserto, anos depois, na oficina de Ademar Miranda. Ainda ouço, quando ando sozinho, nas madrugadas vitorienses, o som desse rádio que só traziam notícias boas.