As lições de Cali


Quantos políticos brasileiros poderiam trafegar da Arena – o tronco civil do golpe militar de 64 –, para o PT, o partido político que chegou ao poder com a bandeira mais antigolpe? Dificilmente passariam de dois dígitos, mais provavelmente se contariam nos dedos das mãos, e nesse pequeno colegiado estaria o pernambucano Carlos Wilson. Um caso raro, como raríssimo foi seu perfil de homem público que cultivava mais amizades que votos – o que terminava dando na mesma coisa –, um estilo de que resultou uma trajetória notável, lastimavelmente interrompida precocemente.
Para além do poder, do prestígio alimentado por mandatos eleitorais, Carlos Wilson era apenas Cali, um tratamento afetivo que se ajustava à mansidão de seu jeito de falar e do prestígio pessoal de que gozava pelas demonstrações de bom caráter quando estava lá no alto, nos cargos e postos de mando em que muitos se embriagam, mudam o comportamento, a postura, até a voz. Com ele foi diferente.

Um exemplo muito presente ainda desse lado humano de Cali – e a que ele se referia com frequência – está gravado no Colégio Diocesano de Garanhuns, para onde foi levado como um inquieto adolescente, num tempo em que a juventude buscava identidade própria em todo mundo e o fazia ruidosamente. No dia em que foi anunciado que ele tinha sido vencido pelo câncer, o diretor daquele colégio, professor Albérico, confessou-se atônito e disse que era tão grande a presença de Carlos Wilson como ex-aluno que ficava difícil imaginar uma homenagem proporcional a essa dimensão. E olhe que a história do ex-aluno é igual a de todos os demais, sem privilégios, e essa foi a maior de todas as lições guardadas do grande mestre padre Adelmar – reconhecia Cali mesmo quando estava no mais alto posto Executivo do Estado, nos seus 11 meses como governador.

Vai continuar sendo difícil ao Colégio Diocesano de Garanhuns homenagear seu ex-aluno, como será difícil Pernambuco dimensionar a passagem de Carlos Wilson pelo governo. Porque não foram apenas os 11 meses bem sucedidos de administração, mas o próprio fato de ter sido escolhido por Miguel Arraes como companheiro de chapa o distinguiu e distingue na história política do nosso Estado. No momento da escolha, vivíamos um daqueles momentos típicos mais acirrados de maniqueísmo na história política pernambucana. Não se tratava apenas de esquerda ou direita, mas de ultrarreacionário e progressista, amigo e inimigo da ditadura, e outras tantas clássicas do pastoril eleitoral, nos moldes dos velhos PSD e UDN, inimigos, mais que adversários.

E Carlos Wilson ainda estava – no momento da escolha por um ex-exilado – marcado pelo estigma da Arena, o partido da ditadura, símbolo do autoritarismo. Ele foi chegando com o jeito sereno de quem apenas ocupa o mais discreto dos lugares em uma plateia seleta, com aquela capacidade de realçar os méritos do vizinho e render-lhe homenagem, invertendo papeis, e em pouco tempo até os mais radicais adversários de outrora reconheciam sua fidelidade ao governador, seu compromisso com políticas sociais que num determinado momento de nosso história chegaram a ser confundidas como “coisas de comunistas”. Mas com Cali nada parecia radical ou tinha qualquer conotação ideológica. Era apenas um ato de governo, exercício de competência, decisão política, o que ficou comprovado nos 11 meses em que foi governador, em alguns casos dando uma dinâmica até maior que em todo o período anterior, sem contudo, alardear méritos que não tivessem sido deixados por Arraes ou construídos por sua equipe.

Talvez o maior de todos os reconhecimentos à personalidade de Carlos Wilson tenha sido deixado pelo mais rigoroso dos mestres que ele teve, o padre Adelmar. Quando governador, Cali foi ao padre e perguntou o que poderia fazer pelo Diocesano. A resposta passou a ser um estandarte moral que o ex-aluno sempre lembrava: “O senhor já fez tudo pelo Colégio, que se orgulha de tê-lo como ex-aluno exemplar. Deus abençoe os seus passos e sua vida.”

Fonte: Editorial do Jornal do Commercio (17.04.2009)

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