A beleza da exceção ou saudades de dom Helder
Por Anna Maria Ribeiro
Não consigo fugir da duplicidade do título. Atribuí um, depois outro, e percebi que o certo seria valer-me dos dois.
Nestes últimos dias em que vi excomungada uma equipe médica que cumpriu com seu dever e, com a Lei, me dei conta de que para a religião católica não existe a possibilidade de exceção.
Pouco sei sobre as outras religiões para generalizar a descoberta atribuindo a todas elas este estranho fenômeno. Fenômeno, sim. E dos
maiores. Exceção existe em tudo e em todos. Mesmo no Dura Lex, Sede Lex as exceções ocorrem. Caso não ocorressem, desnecessários seriam os magistrados que a interpretam aplicando-a com bom senso e inteligência, adaptando-a às circunstâncias, cada situação que nela se enquadre.
Exceções existem de montão na natureza e no ser humano, ambos criados por Deus, segundo a Igreja. Não admiti-la é absurdo e desumano, como no caso da menina de nove anos estuprada pelo padrasto. Não discuto a posição oficial da Igreja contra o aborto. É lá uma Lei dela e deve ter sua razão de ser. Mas esta Lei não admite exceções? Nenhuma? Isto me parece burrice.
Mais do que isto parece uma incoerência. Por que o não matarás dos 10 Mandamentos (de onde, me parece, se origina a proibição do aborto) não é aplicado durante guerras que eliminam milhões de soldados e não participantes inocentes? Por que não são excomungados os que as promovem ou os que delas participam? É uma exceção ou não é?
O desumano pronunciamento do Arcebispo de Recife é um tanto sem pé nem cabeça, não é não?
E ai vocês devem estar se perguntando: onde entra D. Helder nesta história?
Além da coincidência de ter sido, também ele, Arcebispo de Olinda e Recife, foi uma das pessoas mais humanas que conheci. Muito amigo de meu pai tive o privilégio de conversar com ele muitas vezes. Fui educada na religião católica, mas não me tornei uma. Não cabe aqui comentar por que deixei de sê-lo. Mas me encantava ouvir D. Helder falar.
A religião católica, a dele, era verdadeiramente a do perdão, a da compreensão, a da aceitação, a da compaixão, a da caridade, nas acepções mais bonitas que possam ter estas palavras. Humano ele era e porque tão humano tinha algo de divino.
Lembro-me da última vez que o visitei em Recife, como sempre o fazia quando lá ia a trabalho. O cafezinho, naquela casinha nos fundos da Igreja das Fronteiras, era de lei. Pouco tempo depois ele morreu e me fez falta. Faz muita falta a este País, como vejo agora.
Desta última vez que o vi contou-me uma história deliciosa que com ele havia ocorrido nos anos de chumbo. Lembro-me de que ri muito e só depois percebi que o riso fácil era uma conseqüência menor do ocorrido. A história é tão linda que nem sei! Não faz rir, não. Faz pensar o quanto havia de grande e humano naquele homem frágil, de voz tão mansa.
Mas vamos ao relato e vocês julgam: naquela época tão sofrida dos anos que se seguiram a 1969, D. Helder era uma figura preocupante.
Como enfrentá-lo?
Confinando-o à sua Arquidiocese a “gloriosa” tinha a maior dificuldade em fazê-lo calar-se. Os olhos do mundo estavam sobre ele e uma repressão maior que o confinamento teria conseqüências funestas para o Governo.
Havia um pavor de que qualquer agressão a ele dirigida pudesse ser atribuída à truculência da revolução. E esta delirava temendo que um
atentado “terrorista” fosse engendrado para incriminá-la.
Da mesma forma, os admiradores D. Helder temiam por alguma agressão desta mesma revolução. Isto fazia com que qualquer deslocamento do Arcebispo fosse acompanhado por carros das duas facções visando garantir e proteger sua integridade física.
Isto incomodava D. Helder que adorava andar a pé pelas ruas do Recife e gostava de fazê-lo com liberdade. Naquela mesma época o Prefeito de Recife resolveu, a bem da ordem e dos bons costumes, banir da cidade as prostitutas, transferindo-as para uma periferia longínqua.
Apavoradas com a possível redução da clientela que lhes garantia o sustento, foram procurar D. Helder para que intercedesse a seu favor. O que ele prontamente fez conseguindo que fosse sustada a medida convencido de que “esconder o sofá” não resolveria o problema social.
Pois bem, num de seus passeios a pé, D. Helder desesperado com a perseguição dos dois carros, deu uma de esperto. Enveredou-se por uma ruela à qual os carros não poderiam ter acesso. Só depois de andar alguns metros é que se deu conta de que estava em pleno baixo meretrício.
Prostitutas em portas, janelas e sacadas, quase nuas, ajoelhavam-se à sua passagem pedindo a benção que ele foi ministrando à direita e à esquerda, apertando o passo para dali sair o mais rápido possível antes que algum repórter surgindo do nada registrasse o inusitado episódio que faria a festa de jornais do mundo inteiro.
Já quase no fim da rua, de uma das sacadas veio o grito entusiasmado e comovido: Viva D. Helder, o bispo das Putas! E a rua explode em palmas e vivas. Sorrindo ele se foi. E sorrindo me contou a história.
Bonito, não?
É o que faria Cristo, acho, na mesma situação.
Mas certamente não é o que faria o atual Arcebispo.
Mas certamente isto se deve ao fato dele não conhecer o Filho de Deus tão intimamente quanto D. Helder conhecia.
E, porque não conhece não aprendeu que considerar que as exceções, e tratá-las como tal, é um ato humano, bonito, inteligente e, sobretudo, cristão.
( Por Miguezim da Princesa * )
I
Peço à musa do improviso
Que me dê inspiração,
Ciência e sabedoria,
Inteligência e razão,
Peço que Deus que me proteja
Para falar de uma igreja
Que comete aberração.
II
Pelas fogueiras que arderam
No tempo da Inquisição,
Pelas mulheres queimadas
Sem apelo ou compaixão,
Pensava que o Vaticano
Tinha mudado de plano,
Abolido a excomunhão.
III
Mas o bispo Dom José,
Um homem conservador,
Tratou com impiedade
A vítima de um estuprador,
Massacrada e abusada,
Sofrida e violentada,
Sem futuro e sem amor.
IV
Depois que houve o estupro,
A menina engravidou.
Ela só tem nove anos,
A Justiça autorizou
Que a criança abortasse
Antes que a vida brotasse
Um fruto do desamor.
V
O aborto, já previsto
Na nossa legislação,
Teve o apoio declarado
Do ministro Temporão,
Que é médico bom e zeloso,
E mostrou ser corajoso
Ao enfrentar a questão.
VI
Além de excomungar
O ministro Temporão,
Dom José excomungou
Da menina, sem razão,
A mãe, a vó e a tia
E se brincar puniria
Até a quarta geração.
VII
É esquisito que a igreja,
Que tanto prega o perdão,
Resolva excomungar médicos
Que cumpriram sua missão
E num beco sem saída
Livraram uma pobre vida
Do fel da desilusão.
VIII
Mas o mundo está virado
E cheio de desatinos:
Missa virou presepada,
Tem dança até do pepino,
Padre que usa bermuda,
Deixando mulher buchuda
E bolindo com os meninos.
IX
Milhões morrendo de Aids:
É grande a devastação,
Mas a igreja acha bom
Furunfar sem proteção
E o padre prega na missa
Que camisinha na lingüiça
É uma coisa do Cão.
X
E esta quem me contou
Foi Lima do Camarão:
Dom José excomungou
A equipe de plantão,
A família da menina
E o ministro Temporão,
Mas para o estuprador,
Que por certo perdoou,
O arcebispo reservou
A vaga de sacristão.
(*) Poeta popular, Miguezim de Princesa,
é paraibano radicado em Brasília.
Fonte: Blog do Jamildo
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